Dial P for Popcorn: Pessoas da Década: Charlie Kaufman

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Pessoas da Década: Charlie Kaufman

Bem-vindos a uma das rubricas semanais do Dial P for Popcorn, a ter lugar no início da semana (normalmente segunda ou terça-feira). Nesta rubrica vamos discutir as pessoas que se tornaram (ou que continuaram a ser) grandes nomes na década de 2000, sejam actores, realizadores, compositores, fotógrafos, entre outros.


E esta semana vamos virar a nossa atenção para uma classe que muitas vezes não tem o respeito que merece. É que se é verdade que um realizador pode conseguir fazer maravilhas com um argumento mau, imagino que também seja verdade que um realizador pode conseguir uma obra-prima assinalável só porque quem escreveu as palavras que os actores pronunciam redigiu um texto de qualidade impressionante. Os argumentistas são, muitas vezes, os parentes pobres dos realizadores no sentido em que recebem muito menos respeito que o que merecem, uma vez que não há filmes sem gente que os escreva. E se adoram culpar os argumentos quando os filmes são maus (com razão, na maioria dos casos), porque não fazer o mesmo quando o argumento é brilhante mas a realização é um horror? Aí está o problema, é que normalmente é o realizador e não o argumentista que recebe o crédito quando as coisas correm bem.

Este senhor de que vou falar a seguir é, curiosamente, um dos poucos exemplos do contrário. E como foi ele que escreveu o argumento de um dos meus filmes favoritos da década passada - e recebeu mais crédito que o próprio realizador - não podia deixar de estreá-lo nesta rubrica logo que pegasse nos argumentistas. O filme em questão é "Eternal Sunshine of the Spotless Mind" e eu vou falar então de...

Charlie Kaufman


Uma carreira relativamente curta a nível cinematográfico mas com bastante riqueza e qualidade no trabalho até já efectuado. O primeiro filme de Kaufman como argumentista foi o extraordinário case-study de Spike Jonze, "Being John Malkovich", em 1999. Um filme bizarro e maluco a vários níveis mas mesmo assim espectacular. Dois anos mais tarde, em 2001, ele assinou o argumento de "Human Nature" para o realizador Michel Gondry, um filme que falhou em repetir o sucesso do seu primeiro escrito mas que foi, mesmo assim, elogiado pelo estilo evoluído, original e poderoso de escrita. Em 2002 escreveu o argumento de "Confessions of a Dangerous Mind", mais um falhanço menor, que foi no entanto bem recebido pela crítica, também tendo sido ajudado pelo facto de ser o filme de estreia de Clooney a realizador.


Contudo, foi com os dois filmes seguintes e o sucesso que estes trouxeram que este argumentista se tornou dos mais populares em Hollywood. Em 2002 volta a colaborar com Spike Jonze naquele que é o filme mais popular do realizador, o excelente "Adaptation", com Cage, Streep e Cooper (que venceu um Óscar pelo filme) e que funciona como uma espécie de auto-biografia do próprio Kaufman, que se imagina a ele a redigir um argumento baseado na obra de Susan Orlean. Ambos os filmes de Jonze valeram a Kaufman a nomeação para Melhor Argumento Original nos Óscares, tendo perdido as duas vezes. Seria à terceira que ele celebraria, com o que é considerado o melhor argumento original da década, o de "Eternal Sunshine of the Spotless Mind", em 2004, realizado por Michel Gondry e protagonizado por Carrey e Winslet (com Ruffalo, Dunst, Wilkinson e Wood no elenco de suporte).


O filme foi um sucesso estrondoso com a crítica, valeu nomeação a Kate Winslet para Melhor Actriz (que devia ter ganho nesse ano, na minha opinião) e o público também adorou. Esta bela história de um amor desencontrado na vida real que contudo se mantém na mente é sinceramente uma história bastante incrível e original (claro que haverá sempre quem discorde deste meu comentário, é normal devido às gigantes expectativas que se criaram em relação a este filme) e foi bem honrado com a estatueta de Melhor Argumento Original, sendo que é hoje em dia um dos principais termos de comparação para os escritos que o sucederam. E o engraçado mesmo é que Gondry nunca mais na vida fará outro filme tão bom como aquele e provavelmente a sua realização contribuiu largamente para o sucesso do filme, mas é sempre Kaufman que é relembrado quando o filme vem à baila. O argumentista só tem mais um filme na filmografia, que ele escreveu e realizou, o muito incompreendido (e brilhante, há que acrescentar) "Synecdoche, New York" de 2008 onde Seymour Hoffman dá uma extraordinária performance (além do excelente elenco secundário).


Do futuro nada se sabe, pois não existem mais projectos na sua agenda para breve, mas uma coisa é certa: o seu nome já é um marco na história do cinema e basta ele aparecer associado a qualquer filme que é razão suficiente para ficarmos logo excitados. E esse tipo de reacção não é para qualquer um. É só mesmo para quem é formidável no que faz.


3 comentários:

djamb disse...

Adoro o percurso de Kaufman, embora não tenha gostado tanto de alguns filmes como de outros.

Adorei a história de "Eternal Sunshine of the Spotless Mind", embora ache que não poderia ter sido outro realizador a trabalhá-lo senão Michel Gondry. Ouso ainda dizer que "Synecdoche, NY" é uma das suas obras-primas, não tanto pela complexidade da narrativa, mas sobretudo pela reflexão sobre a vida da personagem de Hoffman que, curiosa e brilhantemente, se reflecte em todas as pessoas com quem ele tem contacto.

DiogoF. disse...

Óptima e justa escolha. Devo dizer que quando disseste que ias falar sobre um argumentista, nenhum me veio à cabeça, mas, agora, faz todo o sentido.

O texto está excelente, uma vez mais - sintético, informativo. Uma das rubricas de que mais gosto, aqui no vosso blog.

Algumas observações quanto ao que foi então tratado:

- Admiro a ascensão rápida que sofreu;

- Gosto do MALKOVICH e do ADAPTATION, ainda não vi mas estou curiosíssimo para ver o SYNEDOCHE;

- O SPOTLESS MIND é um filme que me ficou entalado desde sempre. Nunca vi tanto buzz à volta de um filme nos últimos tempos, acho eu. Ia com demasiadas expectativas e saí desiludido. No entanto, tiro o chapéu a originalidade do argumento e culpo, de certa forma, a sua concretização (o que me leva ao ponto seguinte);

- Sobre a vossa introdução: aplaudo a tua/vossa consciência em relação à figura menosprezada do argumentista, é muito injusto. Isto também porque não concordo contigo quando dizes que um bom realizador consegue salvar um mau guião - acho que um bom filme, com uma boa direcção, precisa de um bom guião. Tornam-se um só.

Jorge Rodrigues disse...

@djamb, eu também concordo que o Gondry é bastante maltratado à custa de ter realizado o ETERNAL SUNSHINE. Acho que muitos realizadores matavam para ter um filme desses na filmografia. E depois ele tem outro problema, que é o que todos acharem que Kaufman é que é o génio por detrás do filme quando eu acho mesmo que foi uma colaboração a 2, sem dúvida alguma.


@DiogoF., pois não sei que te faça. Eu gosto muito, mesmo muito do filme e toda a gente a quem recomendei também gostou, mesmo com enormes expectativas. Não sei que te diga. Se calhar hás-de rever daqui a uns anos e hás-de mudar a tua opinião.

Quanto à minha opinião sobre os argumentistas... Eu penso que há guiões maus que alguns realizadores conseguem transformar em qualquer coisa minimamente agradável (por exemplo, Avatar - um argumento horroroso; um filme bastante bom - bem, se calhar devia de arranjar outro exemplo melhor mas agora não me estou a lembrar e este serve).

Mas concordo plenamente contigo quando dizes que um bom guião e uma boa realização tornam-se um só. É totalmente verdade.

Ah. E recomendo vivamente o SYNECDOCHE NY. Não percebo como foi tão maltratado pelos circuitos de prémios e tudo porque os críticos todos que conheço adoraram o filme.

Abraço e obrigado pelos comentários,

Jorge Rodrigues